21 de jan. de 2008

As Coisas dentro da caixa

O caminhão de mudanças levou até a nova casa os móveis, eletrodomésticos e todo o tipo de quinquilharias úteis e inúteis que costumam compor uma casa. Televisor, geladeira, DVD, fogão, vasos de plantas, roupas de cama, quadros, enfeites, copos, pratos, coisas velhas e coisas novas, compradas especialmente para o que gostavam de chamar de "O" recomeço. Jarros com alças quebradas, baixelas reluzentes, o chuveiro sem resistência, a mesa de centro lascada, sofás de couro com o estofamento gasto aqui e ali, e a cama, nova em folha, ainda embalada em plástico bolha, e que, pediram eles aos transportadores que tivessem um cuidado todo especial para com esta peça.
Optaram por fazer o transporte dos pedaços gastos de suas vidas por uma destas empresas especializadas, encontradas nos catálogos telefônicos. Depois das conversas, acabaram por decidir por uma empresa de certo renome, cujo preço acompanhava sua reputação. Acreditavam assim que os estragos seriam menores nas já danificadas estruturas do passado. Cada coisa em seu invólucro apropriado, protegidas contra as possíveis quedas e choques. Caixas de papelão, embalagens de madeira, plásticos protetores, tudo pensado para preservar o melhor possível roupas, móveis e brick-a-braques.
Assim as coisas chegaram ao destino, a nova casa, tentativa de reerguer um passado que já não sabiam dizer se havia sido bom ou não, onde a contabilidade do que chamamos felicidade não era possível ser feita. Todos os resultados, ativos, passivos, débitos e dividendos, não conseguiam mostrar se durante todos aqueles anos o saldo era de lucro ou prejuízo.
Os móveis foram colocados em seus lugares. Sofás na sala, cama no quarto, como faz prevalecer o uso comum. Montados os armários e dentro deles colocado tudo aquilo que lhes era cabido. Os fios foram para as tomadas, as plantas para a varanda, nas paredes nuas foram pregados os quadros. Em poucos dias já se podia chamar o novo endereço de casa, e, em alguns meses, assim acreditavam, poderiam chamar aquele lugar desconhecido de lar.
Uma caixa, entretanto, apesar de todos os esforços para deixar tudo na mais perfeita ordem, permaneceu lacrada, deixada ao lado do sofá da sala. Não houve nada de especial que motivasse o fato, tudo foi sendo guardado nos devidos lugares, as caixas que transportaram todas as outras coisas foram sendo esvaziadas e jogadas fora, junto com tudo que não mais era necessário. Esta foi sendo deixada para o dia seguinte, e deste para o próximo.
A mudança foi julgada como concluída, a caixa esquecida, corpo estranho perdido entre objetos comuns. Nem ele, nem tampouco ela, preocuparam-se em saber o que estava acondicionado dentro do papelão, e em momento algum sentiram falta de qualquer coisa que os fizesse romper o lacre que a fechava, e assim ver se aquilo que perderam ou necessitavam pudesse estar ali guardado.
Os meses foram se passando, levando com eles tudo aquilo que o tempo costuma levar, e a caixa acabou se integrando ao ambiente e ninguém mais se dava conta da estranheza do objeto em meio a sala de estar. Acabou se transformando em uma espécie de aparador, que era espanado semanalmente pela faxineira, e onde os objetos que não podiam ficar por muito tempo seguros por mãos acabavam indo repousar. Sobre a tampa, manchas de copos, de taças de vinho, gordura e outras não identificáveis marcavam o papelão.
E nunca ninguém ouviu, nem eles, nem amigos que por vezes os visitavam, qualquer rumor saindo de dentro dela e lá, aprisionadas, as coisas gritavam desesperadas por poderem participar daquele simulacro de vida.

Mauricio Spina - 03/2007


3 comentários:

Anônimo disse...

Maurício,
Gostei desse conto. Senti uma certa influência do que se coloca mais ou menos no balaio do realismo fantático. Mas tudo bem. Continue escrevendo. Assim que tiver mais tempo quero ler e reler o outros.

valeu.
william

Henrique Santana C. disse...

yeah, que demais esse conto^^

Parabens.

Kely Cristina S. Felício disse...

Gostei muito desse conto, me fez pensar que fazemos muito isso com a vida, enchemos de glacê o gosto que já não nos nutre, maquiamos o que tememos modificar, colocamos um band-aid manco nas feridas que pedem cuidado real, e acreditamos nas nossas próprias camuflagens. Um abraço.