21 de jan. de 2008

Espelho

Esmagou o cigarro no cinzeiro com uma raiva incontida, sem saber de onde ela vinha, e com isto queimou o indicador da mão direita, com o que não se importou. A TV estava ligada no noticiário noturno, sem som. Todas as notícias já tinham sido vistas pela manhã, e também ao final da tarde, e ontem, e antes disto também. Todos os dias as notícias eram as mesmas. Pegou o controle remoto e correu pelos canais da TV. Desenhos animados idiotas; um ator sendo entrevistado com ar de quem conhece todos os segredos do mundo; uma mulher de feições humildes chorando por algo que não ele conseguiu entender; um televangelista gesticulando e gritando com cara de assassino, enquanto os fiéis observavam com os braços estirados para o alto e rostos extasiados; aparelhos inúteis sendo vendidos por preços exorbitantes por vendedores com dentes muito brancos e enormes sorrisos enganadores.
Quando se cansou daquilo, desligou a TV, foi até a cozinha, abrindo passagem através de latas de cerveja amassadas, pratos com restos de comida ressecados, pontas de cigarro, jornais antigos que há muito tinham sido lidos. Não mais se lembrava de quando havia perdido o interesse pelas coisas do mundo e se acostumara com o básico: alguma comida, cervejas, vinho barato e, quando o dinheiro permitia, foder com uma putinha qualquer, o que acontecia com menos freqüência do que gostaria.
Na geladeira uma última lata de cerveja o aguardava. Tomou-a sem pressa, sentado a mesa, com os olhos postos no vazio, pensando no nada, a cabeça sem idéias, sem lembranças, sem vontades. Depois de um longo tempo riu-se daquilo, passou a mão pelo rosto e notou que tinha a barba por fazer há semanas. Lentamente foi ao banheiro, encontrou alguns aparelhos de barbear usados dentro do armário e com a água correndo, sem espuma e com laminas enferrujadas, iniciou o longo e penoso processo de se livrar dos pelos do rosto, tarefa que levou uma eternidade para ser concluída. Era noite alta quando terminou e então encarou longamente sua imagem refletida no espelho: as rugas que ele não sabia existirem, os dentes amarelos de nicotina, os pelos longos saindo pelas narinas, as sobrancelhas grossas de pelos rebeldes, os lábios finos e pálidos, destoando do nariz grande e inchado. Com um soco quebrou o espelho, esfacelando a imagem refletida. Não era ele, não se reconhecia naquele reflexo. Com os dedos pingando sangue pegou as chaves de casa, girou a maçaneta e saiu. Talvez para nunca mais.

Mauricio Spina 01/2008

2 comentários:

william paul da costa disse...

Parabens Spina,

gostei desse conto. Dessa coisa incontida mas que a maior parte das vezes mantemos contida, não?

Mas é isso. Valeu.
william

Kely Cristina S. Felício disse...

Trágico e sobretudo belo o momento em que morre o simulacro e nasce o homem. Um abraço.